Espalhar-se
E me espalho lentamente encontrando partes que deixaram de ser? Talvez agora. Não ontem. Espalhar-se é encontrar a graça de não saber quais pedaços nos compõem. É uma alegria insossa, mesclada com o inusitado de perder-se em partes. As cores menos vívidas surgem daí. Ainda assim, é alegria. Espalhar-se, deixar-se em partes, não encontrar o fio condutor é o destino de todos para a humanização? Não ontem. Talvez agora.
E se não me faço inteiro é pelo fato de não me querer completo. A completude dá medo. A completude tira o medo, também. Estar completo é negligenciar a necessidade de sermos completados pelos outros. O medo do outro e o medo pela ausência do outro. É inconstância, mas é composição humana. Quero-me humano e incompleto. Aprender é assim, do mesmo modo. Aprender a desconhecer o ser que achamos conhecer é o mais absoluto reflexo da condição de humanização pela qual experimentamos o milagre mundano de sermos. Mas, se não o somos, deixamos a experiência? Em absoluto.
Experimentar ou experienciar é igualmente imprescindível à nossa condição quanto as cores menos vívidas que percebemos no cotidiano. Não o fazendo deixamos apenas o vazio que poderia ter sido preenchido com as dúvidas. São elas o nosso porto-seguro? Talvez amanhã. Elas também colorem nosso espalhar. São tons pálidos, paralisantes, por vezes inadequados. E são nossos. Nossas tonalidades. Mistérios invisíveis que se desnudam a cada resposta obtida. Mistérios menos visíveis quando na boca se calam perguntas nunca feitas. E me espalho lentamente diante de partes que deixaram de ser.
Agrada-me a experiência de experimentar a mim mesmo nesse processo de partes conhecidas e reconhecidas e reaprendidas e negligenciadas. Não é novo, não é elétrico. Não é nada. Apenas agrada-me com essa certa alegria insossa do inusitado. É como ver Deus em mim. É encontrar a magnitude inapreensível de poder não-ser o que já deveria ter sido conhecido e continua um mistério insondável para a minha humanidade? Encontrar Deus em mim é ver tudo isso. É saber do mistério e nada poder fazê-lo. Ele está lá. E as experiências também.
E me espalho lentamente encontrando partes que deixaram de ser. Nesse exato instante. Pois espalhar-se é dar-se ao luxo excêntrico de poder olhar-se em partes pequenas e juntá-las, como em um jogo de crianças, para construir-se, moldar-se do modo que se quer. E quero-me desse modo: humano em partes espalhadas. Brincar com os outros nessa construção é, igualmente, parte da humanização necessária. E se me junto hoje, deixarei de sê-lo amanhã? Nunca o saberei. Espalho-me lentamente, ontem, hoje, indefinidamente.
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